quarta-feira, 1 de junho de 2016
“Na Síria é preciso sempre ter coragem”
Meu nome é Hadi*, tenho 26
anos, sou palestino-sírio, e estou refugiado no Brasil há dois anos. Minha história
não é só minha – é igual à de milhões de refugiados.
Na Síria, até 2011, eu tinha
uma vida estabelecida, com trabalho, estudo e casa. Eu tinha tudo. Hoje eu não
tenho. A vida lá era tranquila e minha família era muito legal. Quando eu
ficava sozinho, visitava minhas irmãs, brincava com os filhos delas, visitava
meus amigos. Faltava um ano para eu completar minha faculdade e me tornar
advogado. Até que começou a intervenção.
O conflito em Damasco começou
nas periferias, que foram tomadas por grupos rebeldes. Os rebeldes começaram a
avançar para dentro da cidade e chegaram até a área onde ficava a minha casa,
em Yarmouk Camp. Quando os grupos rebeldes entraram, os militares avisaram que
o bairro tinha caído e os moradores precisavam sair. Tenho na minha memória a
imagem da noite em que os morteiros foram lançados até o amanhecer. De manhã
todos os moradores, mulheres e crianças fugiam pelas ruas para buscar abrigo em
lugares organizados pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos
Refugiados da Palestina (sigla em inglês UNRWA).
Tudo começou a ser destruído,
passo a passo, coisa por coisa. Minha casa foi destruída, amigos morreram, tudo
foi destruído.
Durante três meses nós ficamos
nos transferindo de um lugar para outro, até que ao final só tínhamos uma
mochila com as roupas principais e os documentos, para quando precisássemos ir
embora para outra casa. Minha vida passou a piorar cada vez mais. Eu tinha que
escolher: ou entrar na guerra, conseguir arma e me entregar ao conflito civil
ou sair da Síria. Porque para os homens agora há muito poucas opções.
A maioria das pessoas que
vivem em Yarmouk Camp é palestina. Elas não querem participar do conflito
civil. Crianças, mulheres e idosos sofrem muito para viver lá, para comer –
mais de 200 pessoas morreram porque não havia comida. A maioria quer sair, mas
não têm dinheiro, não têm quem as ajude, não têm um Estado para onde ir, e não
podem voltar para a Palestina. Elas querem uma solução. Vários grupos controlam
Yarmouk Camp, que está destruído. Essa comunidade está no meu coração porque eu
morava lá; mas muitos outros bairros em Damasco estão na mesma situação e neles
as pessoas morrem dentro de casa porque as bombas caem em cima de suas casas.
Assim como Hadi, muitas
pessoas precisam de proteção. Assine a petição e posicione-se a favor dos
direitos das pessoas refugiadas!
A Jornada até a Turquia
Decidi ir para a Turquia. Mas
eu não podia passar pela fronteira por Aleppo porque meu passaporte tinha
expirado. Assim como eu, muitas pessoas querem ir embora da Síria, mas não
existe caminho seguro para sair. Para os palestinos que moram na Síria,
especialmente em Damasco, a fronteira está fechada. Nós, palestinos, não
podemos entrar no Líbano nem na Jordânia e não há caminho para a Palestina. Só
podemos entrar na Turquia de modo ilegal, mas temos que passar pelo Caminho da
Morte – entre Damasco e Aleppo. É muito perigoso porque não se sabe quem está
controlando o caminho. Tem pontos controlados por militares, bandidos, pessoas
do tráfico, de grupos armados. Há jovens que não têm dinheiro para pagar
propina para essas pessoas no caminho; então eles morrem ou desaparecem.
Depois de atravessar o Caminho
da Morte, cheguei a Aleppo e encontrei um grupo se preparando para correr e
entrar na Turquia. Mulheres, crianças, todo mundo ia correr. Fui com eles e
atravessei a fronteira. Não me esqueço de uma coisa que se passou comigo lá: eu
corria com uma mochila nas costas. Uma mulher com seu esposo ou irmão, não sei,
também corria com uma mochila, mas a dela caiu. As pessoas corriam. Ela começou
a ficar cansada e não conseguiu seguir. Eu a ajudei um pouco com a mochila, mas
também fiquei muito cansado, e aí a deixei e comecei a correr.
Fico triste quando me lembro
disso porque me senti um pouco egoísta. Tenho a lembrança dessa cena na minha
cabeça até agora. É algo difícil pra mim. Porque eu passei por muitas coisas
lá, tenho muitas lembranças de imagens de Damasco, de quando corri, de quando
precisei me mudar, de quando os morteiros começaram a cair perto das casas. É preciso
ajudar as crianças, ajudar as famílias. Na Síria é preciso sempre ter coragem.
A Vida na Turquia
Quando cheguei a Istambul,
pensei: “há vida fora da Síria”. Foi difícil conseguir um albergue para dormir
porque meu passaporte estava vencido, mas encontrei um albergue que aceitou meu
passaporte com a validade vencida. Fiquei três dias pensando sozinho. Minha
sorte foi receber ajuda de amigos de uma família espanhola que eu tinha
conhecido em Damasco antes da guerra. Sem eles eu não teria conseguido sair da
Síria e me instalar na Turquia; eles me ajudaram muito no primeiro mês.
Nos dois primeiros meses, procurei
me regularizar para trabalhar formalmente em Istambul. Procurei ajuda em
Ancara, fui a várias organizações internacionais, mas não consegui ajuda de
ninguém. Me diziam que não ajudavam pessoas que haviam chegado da Síria.
Comecei a procurar trabalho,
mas foi muito difícil conseguir casa. Fiquei muito cansado, com pouco dinheiro,
tive vários problemas, não conseguia esquecer as imagens da guerra. Foi muito
triste. Viajei para outra cidade para procurar os Médicos Sem Fronteiras porque
eles acolhem muito bem as pessoas e eu não estava bem de saúde. Eu me sentia
sozinho e não tinha confiança para fazer amizade. Precisava de um médico, de
alguém que me desse opções e fizesse meu planejamento, porque eu não conseguia
mais pensar sozinho. Ele falou para mim que, se eu morasse mais dois meses em
Istambul, ficaria mais deprimido e solitário. Depois ele me passou um
tratamento por três ou quatro meses, até que eu consegui me planejar.
Comecei a pensar direito,
voltei para Istambul e consegui um trabalho de 13h por dia, sem folga, sem
nada, porque eu não tinha documentos para conseguir um emprego formal. Fiquei
nesse trabalho até conseguir meu visto para o Brasil.
O caminho e a vida no Brasil
Antes da guerra, eu havia
conhecido uma brasileira pela internet. Eu queria aprender inglês e ela queria
aprender árabe. E já naquele momento me apaixonei por ela. Ela queria ir para a
Síria. Mas mudou de ideia quando começou a guerra. O Brasil era então um
destino com o qual eu sonhava. E na Turquia os refugiados falavam que o Brasil
estava aberto aos refugiados, mas eu não tinha tido essa ideia antes porque meu
contato com a minha futura esposa era pouco frequente naquele período. Retomei
o contato com ela e me apaixonei antes mesmo de viajar.
Fui ao consulado brasileiro
onde me disseram que eu precisava de visto e, para consegui-lo, deveria ter uma
passagem aérea. Tive que esperar mais de quatro meses até conseguir meu
passaporte da Palestina. Quando ele ficou pronto, levei mais um mês antes de
viajar para o Brasil. Em 2014 entrei no Brasil e minha esposa estava me
esperando. Fui para a Cáritas e eles me ajudaram a conseguir minha
documentação. Consegui uma esposa, consegui uma vida. Senti que não ficaria
mais sozinho, ficaria com pessoas e com segurança.
Comecei a trabalhar em uma
empresa com direitos iguais aos dos brasileiros. É diferente aqui porque as
pessoas ficam curiosas porque eu não falo português e as pessoas nem sabem onde
fica a Síria. No início foi muito difícil porque sou estrangeiro. Mas com paciência
meu trabalho foi melhorando e minha comunicação com os colegas também. Como eu
não falava português, não entendia as conversas e não sorria. Fiquei muito
triste nos primeiros quatro ou cinco meses, foi uma coisa horrível. As pessoas
que trabalham comigo têm muita paciência. O gerente, o patrão, todos lá são
pessoas muito boas. Gosto muito do Brasil, da comunidade de pessoas, do coração
dos brasileiros, da alegria daqui. Só sinto falta de fazer amigos. E também
tenho o sonho de completar minha universidade.
Hoje sinto falta da minha
família e da Síria. Mas aqui é melhor do que ficar lá na guerra. Estando aqui,
ajudo nas economias da minha família. Agora meu plano é morar toda a minha vida
aqui com minha esposa e meus futuros filhos; não penso em outra coisa. Meu
objetivo e de todos os refugiados é construir uma vida melhor nos países que
nos recebem com respeito aos nossos direitos.