sábado, 30 de abril de 2016
As forças de segurança do Rio mostram sua verdadeira natureza antes dos Jogos Olímpicos
Do aeroporto internacional do
Rio de Janeiro, o táxi passa pela fronteira de uma imensa favela onde as casas
de tijolos vermelhos estão alinhadas em ruas estreitas; os telhados são
coroados com caixas d’água azuis e roupas penduradas dançando na brisa sob
telhas de alumínio que a protegem das chuvas frequentes que transformam as ruas
da cidade em rios. Crianças entram e saem das casas correndo como flechas,
enquanto abutres vasculham as pilhas de lixo acumuladas nas margens de um rio.
No rádio do carro, um DJ toca uma seleção de baladas dos anos 1980. O piano da
introdução de “True Colours”, da Cyndi Lauper, enche o ar. Virando a esquina,
no topo de uma colina distante, o Cristo Redentor, a estátua icônica estendendo
os braços sobre a cidade aparece.
Dentro de cem dias, o Rio vai
se tornar a primeira cidade sul-americana a sediar o maior espetáculo da Terra:
os Jogos Olímpicos onde 10.000 atletas vão competir em 28 esportes e que vai
custar bilhões de dólares. É um evento que, diz-se, promove a paz, mas a sua
chegada a esta cidade está caminhando para atingir exatamente o oposto.
Milhares de visitantes percorrerão o mesmo trajeto ao chegar à cidade conhecida
como Maravilhosa, por suas praias de cartão postal com exuberantes montanhas ao
fundo, mas poucos saberão o que se passa no cotidiano das 600 favelas do Rio
enquanto os melhores atletas do mundo correm, saltam e nadam para a glória.
O Brasil tem, em termos
absolutos, o maior número de homicídios do mundo. Em 2014, o ano em que sediou
a Copa do Mundo de futebol, 60.000 pessoas foram mortas. O escândalo é que
muitas dessas mortes foram causadas pelas mesmas pessoas que deveriam proteger
a população. Só a polícia do estado do Rio matou 580 pessoas em 2014, 40% mais
do que no ano anterior. Em 2015, o número foi ainda maior: 645. Destas mortes,
307 ocorreram na própria cidade e representam 20% de todos os homicídios
cometidos lá. A maioria das vítimas são jovens negros que vivem em favelas e
outras comunidades pobres.
Até agora, em 2016, o número
de mortes pela polícia é 10% mais elevado do que aqueles cometidos durante o
mesmo período do ano passado. Com o lançamento da operação de segurança para os
Jogos Olímpicos, se não existirem salvaguardas adequadas, esse número pode
aumentar ainda mais. Enquanto isso, a implantação maciça nas ruas de policiais
civis e militares e até mesmo do Exército, será para muitos brasileiros um
lembrete dos dias sombrios da ditadura.
O complexo de favelas da Maré,
situado próximo ao aeroporto internacional do Rio, pode parecer à primeira
vista uma favela como a de qualquer outra cidade da América Latina. Casas em
ruínas reivindicando espaço da rua entre barracas de banana, mamão, ovos e
camisas falsificadas de futebol. A fiação aérea cruza as ruas, conectada
precariamente com a rede elétrica sobrecarregada das casas mais próximas. Os
jovens andam de moto, os caminhões passam com dificuldade nas estreitas ruas
esburacadas com a carga que alimenta lanchonetes e mercados, enquanto se escuta
alto música de baile por uma janela aberta.
Mas se olharmos mais de perto,
vemos algo que torna este lugar surpreendentemente diferente. Em quase todos os
cantos desta vasta favela, onde 140.000 pessoas vivem, há um adolescente
sentado em uma cadeira de plástico com um revólver brilhante em sua mão ou uma
metralhadora no colo, “protegendo” a área da sua facção. Adolescentes que
carregam armas são algo tão comum que a vizinhança nem presta atenção. A
atmosfera pode ser tensa. Muitas vezes, o ritmo acentuado dos tiros é a trilha
sonora mortal de vida aqui.
Pouco antes da Copa do Mundo,
o Exército brasileiro chegou à Maré, estacionando veículos blindados nas suas
ruas estreitas e irregulares, e colocando cerca de 3.000 soldados em postos de
controle e patrulhas, por uma questão de segurança. A Copa durou um mês, mas
eles permaneceram ao longo de um ano. Moradores foram encurralados entre a
violência das facções do tráfico de drogas e a agressividade das forças de
segurança. Os tanques se retiraram no final do ano passado, mas com a
realização dos Jogos Olímpicos em poucos meses, muitos preveem que eles
voltarão em breve.
Vitor Santiago, 30, morou
durante toda a sua vida no Complexo da Maré e, quando numa tarde escaldante de
fevereiro do ano passado prometeu a sua filha Beatriz, de 3 anos, que a levaria
para a praia no dia seguinte, tinha a firme intenção de manter sua palavra.
Haviam acabado de demiti-lo, então ele tinha tempo e o dinheiro recebido. E no
verão, no Rio de Janeiro, com a temporada de carnaval em pleno andamento,
passar o dia na praia é o que os cariocas mais gostam. Separado da mãe de
Beatriz, Vitor tentava passar todo o tempo que podia com sua filha.
“Toda segunda e quarta-feira eu ia vê-la
depois do trabalho”, diz ele. “E na sexta-feira, eu a pegava e trazia para cá
[a casa onde ele vive com seus pais] para passar o fim de semana. Estávamos
sempre fazendo planos juntos.”
Mas antes de ir para a praia
ele tinha um compromisso importante. Seu time, Flamengo, jogaria naquela noite,
e ele tinha ficado de assistir o jogo com os amigos em um bar perto de casa.
Vitor se despediu de sua mãe, Irone; deu um beijo de boa noite em Beatriz e foi
ver seus amigos.
As ruas da Maré estavam
bastante tranquilas, e após o apito final, o grupo de Vitor foi para um bar em
um bairro nas proximidades. De volta para casa, de madrugada, eles estavam
felizes; Era carnaval e a noite tinha sido boa. Mas quando se aproximaram da
Maré, viram as ruas cheias de pessoas e soldados em todos os lugares. Um homem
vestindo uniforme do exército disse-lhes para parar o carro.
Vitor e seus amigos pararam e
saíram do veículo. Os soldados revistaram o grupo e o carro. Lhes deram a luz
verde e eles seguiram caminho. Mas ao virar uma esquina, viram outra barreira
do exército mais á frente. Eles reduziram a velocidade e os soldados de repente
abriram fogo sem aviso prévio. Vitor tentou curvar-se enquanto caía uma chuva de
balas no carro, mas sentiu um choque de dor quando uma bala atravessou a porta
de trás do veículo, o tingiu de lado e o deixou com uma costela quebrada,
pulmão perfurado e lesão na coluna.
“Naquele momento eu perdi toda a
sensibilidade abaixo da cintura, não sentia minhas pernas”, disse ele. “Se a
bala tivesse entrado um pouco acima, eu teria ficado paralisado do pescoço para
baixo. No carro, tudo o que eu me lembro é o som de janelas se quebrando e eu
de não saber o que estava acontecendo. Não sabia onde eu tinha sido ferido, se
a bala tinha vindo de trás ou de outro ângulo … tinha muito sangue.”
Fora do carro foi um “enorme
barulho” de pessoas gritando e chorando. Vitor perdeu e recuperou a consciência
várias vezes e, em seguida, entrou em coma.
Uma semana depois, quando
acordou, Vitor sabia que havia sido salvo por muito pouco. Os médicos tinham
dado uma chance de 7% de sobrevivência. Ele descobriu que uma segunda bala
tinha entrado em sua coxa esquerda, quebrou o osso e atingiu sua perna direita,
perfurando uma artéria. Para salvar sua vida, os médicos tiveram que amputar a
perna. E como a primeira bala o atingiu na coluna, ele sabia que provavelmente
nunca ia recuperar a sensibilidade na parte inferior do corpo.
Irone diz que, apesar de tudo,
Vitor é talvez um dos sortudos. Ele reuniu-se recentemente com Terezinha de
Jesus Ferreira, cujo filho foi baleado pela polícia no final de abril do ano
passado. Eduardo, aos dez anos de idade, estava sentado na porta de casa,
brincando com o celular, quando um policial atirou na cabeça dele. Ele morreu
no local. Estes ataques são tão frequentes que dificilmente são notícias no
Rio.
“Nossas vidas mudaram
totalmente, mas pelo menos Vitor ainda está vivo.”
Vitor passou três meses no
hospital. Ele já está há mais de um ano confinado à cama em um pequeno quarto
sem janelas no primeiro andar de sua casa. A escada íngreme e estreita que
conduz à porta de sua casa faz com que seja impossível subir e descer com uma cadeira
de rodas.
“Eu preciso de uma casa adaptada”, diz ele.
“Eu só quero fazer as mesmas coisas que as outras pessoas fazem. Eu não posso
nem ir para a cozinha para cozinhar ou abrir a geladeira para ver o que há.
Esquece o passado; Eu não posso voltar no tempo e recuperar a perna. Mas a
tecnologia avança e logo talvez eu pudesse recuperar a sensibilidade e até
mesmo voltar a andar.”
Até que isso aconteça, outra
pessoa terá que levar a filha dele à praia. Não houve nenhuma investigação
sobre o tiroteio e ninguém foi levado à justiça, transmitindo assim a mensagem
assustadora de que é aceitável este tipo de violência por parte das forças de
segurança, deixando em liberdade os responsáveis para que isso volte a
acontecer.
Os Jogos Olímpicos estão
prestes a começar, e por trás do brilho, esplendor e glória, isto é o que está
acontecendo. Se as autoridades não tomarem medidas imediatas para evitar estes
tiroteios das forças de segurança, haverá outros como Vitor e mais Eduardos, e
os organizadores dos Jogos poderão ver seu evento ofuscado pela violação de um
direito humano fundamental: o direito à vida.